sábado, 12 de janeiro de 2013


Eis aqui um pequeno conto sobre as desigualdades sociais. Porque eu acredito que todos somos iguais, porque todos devemos ter as mesmas oportunidades, porque todos somos iguais mesmo pensando e sentindo de diversas maneiras. Eu essencialmente deixo que o sonho comande a minha vida.....

Hoje tive um sonho, sonhei que nasci noutro corpo e noutra cultura. Sonhei e por momentos entrei numa realidade fantástica onde fui livre e feliz como um pássaro. Nesse sonho, vivi num mundo sem preconceitos, sem mesquinhices e sem olhares medíocres. Olhares que olham com pena, com dó e com repulsa.
Nasci no ano de 1987, mais precisamente em Março. Sou um rapaz como outro qualquer, tenho sonhos, idealizo o meu futuro e luto para conquistar pequenas e grandes coisas na minha vida, apenas um factor diferencia-me de todos os outros, o facto de ser de etnia cigana. É verdade sou cigano, sou moreno e tenho a minha própria personalidade, extremamente forte e muito demarcada. Desde pequeno habituei-me à ideia de ser olhado de lado por todos, porque desconfiavam de mim e das minhas atitudes, o simples facto de respirar para muitos já era motivo de medo e desconfiança.
Cresci num ambiente familiar característico das famílias ciganas, com todo o amor e compreensão de quem se ama, aprendi a respeitar os nossos costumes, as nossas aspirações e as nossas crenças, por vezes, preferi construir e seguir o meu próprio caminho, sem medo de ser julgado e condenado por uma sociedade medíocre que por mais que diga que não, leva a mão ao coração e por trás julgam, condenam e excluem sem medida.
Mas preferi tentar mostrar ao mundo que mesmo sendo cigano e sendo supostamente diferente, conseguia criar laços de amizade, ter amigos e acompanhá-los. Mas como a vida não é um mar de rosas e nem sempre o querer é poder, tive muita dificuldade em integrar-me com os outros no meu percurso escolar, sempre frequentei a escola, os meus pais sempre cultivaram em mim a vontade de querer chegar mais longe, a vontade de querer vencer os meus próprios limites e quebrar barreiras. Acabei o secundário com uma média muito boa, e consegui para surpresa de todos entrar em Medicina na Universidade do Minho. Foi difícil para os meus pais e até para muitos elementos da minha família aceitar a minha partida de Lisboa para Braga. Os meus pais sempre me protegeram de todas as acções externas, mas chegara o momento de tomar as próprias rédeas da minha vida e partir em busca de novos conhecimentos, de novos horizontes. E assim foi, os dias seguintes foram stressantes em busca de um apartamento onde ficar, os problemas foram muitos, não fosse eu cigano claro e isso não estivesse estampado na minha cara. Para mim é um orgulho, correr nas minhas veias sangue cigano, nunca cometi um crime, nunca roubei, nunca prejudiquei ninguém, mas toda a gente de excluí.
No entanto, conseguimos arranjar uma casa, pequena mas muito acolhedora, não era o único habitante, tinha como companheiros um rapaz e uma rapariga de quem não tinha conhecimento nenhum, mas sabia que ambos tinham conhecimento da minha existência. O momento de partida dos pais, foi para mim muito doloroso, senti que iria começar uma linha ténue entre nós, pois iria estar mais tempo em Braga do que em Lisboa. Nesse momento, muitas foram as imagens que passaram na minha cabeça, a uma velocidade tanta que fiquei tonto. Imagens da minha infância e do pé descalço a sentir o poder da terra. Enfim, chegou o momento é hora de assumir as minhas escolhas.
No dia seguinte, apresentei-me de imediato nas aulas e a todos os meus colegas, os primeiros olhares foram denunciadores, mas continuei a longa caminhada, fui dispensado das praxes, sob o motivo de ter mais tempo para estudar, tretas e mais tretas, têm medo de mim e preferem a minha distância.
Não os condeno, porque estaria a fazer exactamente o mesmo que me fazem a mim, prefiro alimentar a minha forma de ser e de estar, calmo e tranquilo com a minha própria existência.
Cansado de mais um dia, regressei a casa e mal abri a porta deparei-me com o meu colega do apartamento, o Nuno, que para meu espanto se apresentou normalmente e sem receios, senti de imediato a sua sinceridade, nem que fosse por momentos, pois estava mesmo de saída. Fiquei feliz e ao mesmo tempo confuso e pensei para mim próprio:
- Será que vou conseguir ter um amigo?
Ao mesmo tempo que profiro este pensamento sonoro, ouvi uma resposta muito suave e meiga:
- E porque não? Porque motivo não poderão ser amigos?
Fiquei extasiado, o meu cérebro debatia-se com os inúmeros pensamentos que floresciam do nada. Virei-me lentamente, e vi-a, nunca vi beleza tamanha numa só pessoa, cabelos loiros, como o reluzir do ouro, branca como a neve e olhos cor de mar e profundeza. Comecei a tremer e as palavras não saíam, fiquei parado a admirar tal escultura viva. Passados alguns instantes consegui vencer as minhas fraquezas e respondi:
 - Porque sou cigano não vês?
 E depois respondeu ela sem medo e sem hesitações:
- Só porque és cigano, não tens sentimentos e vontades genuínas.
Para mim, o mundo acabou naquele exacto momento, em vinte e cinco anos nunca ouvi da boca de ninguém, palavras tão sinceras e tão bonitas. Isto não poderia de todo estar a acontecer, não era o curso natural dos acontecimentos, talvez me tivesse habituado à ideia de viver sozinho e no meu mundo ou então casar com uma rapariga cigana de catorze anos e ter uma carrada de filhos.
Chama-se Matilde e tem dezoito anos, entrou no curso de Psicologia, uma pérola perdida. Os dias seguintes foram de nervosismo miudinho, sempre na esperança de a encontrar pela casa a vaguear. Numa manhã, linda e cheia de sol apareceu a Matilde cheia de vida e de cor, parecia o arco-íris, olhou-me fixamente e disse:
- Esta tarde, queres passear comigo e conhecer um pouco melhor a cidade de Braga.            
Não hesitei e apressadamente respondi:
- Claro que sim, seria para mim um enorme gosto. E assim foi, passeamos pela cidade na companhia um do outro, cada vez mais me sentia invadido por sensações brutescas, o facto de conhecer Braga com todas as suas qualidades e potencialidades, cada recanto de Braga tem uma história para contar. É sem dúvida a cidade das mil maravilhas, sons, cheiros, cores, movimentos, tudo parece perfeito, as pessoas passam e olham curiosas para ambos. Confesso que nada me espantava, até porque para espantado chegava a minha própria pessoa, nunca pensei em passar por tal situação, estar com uma pessoa, viver com ela bons momentos e sorrir como se o amanhã não existisse, queria com todas as minhas forças perpetuar aquele momento cheio de magia.
A caminhada tornava-se cada vez mais empolgante, a Matilde falava com uma naturalidade de quem nunca sentiu nem fez ninguém sentir a descriminação de se ser diferente, iguais mas diferentes. Ao seu pé sentia-me forte e feliz, para ser sincero não ouvia a suas palavras com a máxima atenção, apenas apreciava a sua forma delicada de tratar as pessoas e de conversar com elas, os seus gestos delicados e as suas expressões de cordialidade e confiança. No fundo sabia que ambos sentiam algo de diferente um pelo outro, mas o que poderia atrair a Matilde em mim? Perguntas e mais perguntas, interrogações sem fim, e as pessoas continuavam a olhar discretamente, como se estivesse a transgredir alguma regra, mas o mais surpreendente é que a Matilde não temia um momento, não mostrava um momento de fraqueza e segura seguia o seu caminho.
Cansados de andar, parámos um pouco no jardim de Santa Bárbara, uma beleza rara que nunca tinha visto em lado nenhum, por momentos conseguia confundir a cor das flores com a cor do olhar da Matilde. Sentámo-nos e continuamos a conversar, contei um pouco da minha vida e ela contou um pouco da sua, confidências de anos, histórias caricatas, momentos desesperadores. Enfim, senti na Matilde um porto de abrigo, uma montanha escalada, um mergulho profundo, um voo alucinante e uma queda serena e tranquila. Se tivesse que descrever a Matilde, descreveria com certeza o pôr-do-sol na praia, tranquilo, perfeito e verdadeiramente inspirador.
Pela primeira vez na minha vida ganhei coragem e desafiando os meus próprios limites beijei a Matilde, não podia deixar fugir aquele momento, era raro demais para isso, era agora ou nunca. Nessa altura, transportei-me para outra dimensão, o coração ficou acelerado e tudo permaneceu parado e intacto.
Este cigano moreno e de olhos pretos, realizou um dos seus maiores desejos, dar-se a conhecer tal como é, sem máscaras e sem sombras, sem mentiras e sem medos. Este cigano sentiu a sensação de um beijo sincero e quente.
            Passados poucos instantes, ouvi de longe uma voz a chamar pelo meu nome, era a minha mãe a acordar-me daquele sonho fantástico e enternecedor, como pedi para não acordar, como pedi para aquele sonho ser realidade, como pedi Meu Deus, como pedi para ser igual e amado.
            Mas a verdade é que nada passou de um sonho, terei de acordar e enfrentar mais um dia de luta, mais um dia como todos os outros, sem nada de novo e sem a Matilde.
            Sonhei, mas fui feliz por alguns momentos.
Sou cigano, sou moreno e tenho olhos escuros como azeitonas.
Sou eu, porque sou cigano e um dia vou ter contigo Matilde.

 Ana Silva 


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